segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Patenteando a Vida - Palestra, 1999

1999 WORKSHOP: O século da vida artificial. Faculdade de Educação e Letras (FAEL) em parceria com a Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde (FACBS) e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão. Universidade Iguaçu. Tema: Patenteando a vida. Palestrante: Profa Dr.ª Sílvia Mota. 9 de junho de 1999. 13h às 18h.

Exmº Sr. Diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas, Sociais e Aplicadas da Universidade Iguaçu - Prof. Lubanco
Exa. Sra. Pró-Reitora Profª Solange de Oliveira
Exa. Sra. Coordenadora do Curso Jurídico - Profª Maria Tereza
Senhores Chefes de Departamento
Prezados Colegas
Queridos alunos

O novo conhecimento surgido da Engenharia Genética torna possível o acesso ao material genético dos seres vivos e sua manipulação em laboratório, permitindo a utilização de organismos vivos manipulados na produção industrial de produtos alimentícios, químicos e farmacêuticos. Como não poderia ser diferente, esta realidade cria enormes expectativas comerciais.

Quando, ao início desta década, o avanço na área da genética se efetivava colocando ao mundo as descobertas do Projeto Genoma Humano e outros similares, recomendava-se sobre a importância econômica da utilização do material genético humano com fins diagnósticos e terapêuticos.

Aos leigos, a expressão patrimônio genético tornou-se corriqueira; para os juristas é de forte ressonância, pois caracteriza um conjunto complexo, coerente, e transmissível. A tendência humanitária é a de considerar estes inventos como patrimônio comum da Humanidade e, portanto, livre de toda a possibilidade de apropriação privada.

Partindo do título desta palestra, cabe explicar, ainda que perfunctoriamente, o que seja patente. Uma patente é uma forma de propriedade intelectual que outorga direitos exclusivos de exploração comercial de uma invenção a seu titular por um prazo de até 20 anos. Os requisitos básicos para patentear são: a demanda da patente deve referir a algo novo sobre o que não houver informação de domínio público; deve implicar um passo inventivo não óbvio; deve ter uma aplicação industrial ou ser de utilidade.

Com fulcro nestes requisitos, teoricamente, a descoberta genética não deveria constituir uma invenção patenteável pois já existe na natureza, o que a descaracteriza como invenção. Sem dúvida, a pressão de grandes interesse comerciais vem pouco a pouco esvaziando o conteúdo desse princípio básico, influindo nos tribunais, para que se permita a concessão de patentes sobre a matéria viva.

Por outro lado, também os genes humanos estão sendo privatizados. É como se a apropriação das pessoas - escravidão - transladasse para os seus genes. À medida que o Projeto Genoma Humano avança na localização e determinação das funções de um número crescente de segmentos de material genético, aumenta a corrida para obter a propriedade comercial deste material e suas aplicações.

J. Craig Venter (1994, p. 131) salienta ser importante limitar a discussão sobre o genoma humano, pois é errôneo afirmar que se pretende patentear a vida. Afirma o cientista: “[...] eu certamente não considero aos genes matéria viva. São entidades químicas [...].” Revela que muito brevemente será possível: “[...] produzir genes sinteticamente no laboratório [...] podemos por todos os genes humanos em uma proveta; isso não cria a vida.” Por tal razão, continua a explicar: “[...] muitas das discussões sobre patentes, se consideram, sob as leis que abarcam a composição da matéria, porque realmente isso é o que são.”

Embora moralidade e comércio não sejam necessariamente conflitantes, a questão do patenteamento de sequências de genes revelou tensões, quando em meados de 1991 um departamento dos National Institutes of Health (NIH) tentou patentear todo e qualquer fragmento do DNA descoberto por seus pesquisadores, mesmo que os cientistas ainda não tivessem conhecimento da sua função. A situação agravou-se quando veio a público que os NIH decidiram dar esse passo sem consultar James Watson, diretor de seu próprio Centro Nacional Para a Pesquisa do Genoma Humano. O cientista opôs-se inflexivelmente à ideia, ao perceber que impossibilitaria o livre fluxo de informações científicas, tornando mais difícil a colaboração internacional e impedindo o progresso, pois ao invés de publicar abertamente seus dados nos periódicos científicos, todos os investigadores passariam a escondê-los até conseguir protegê-los com patentes e ninguém mais saberia o que os outros estariam fazendo.

Em 1992, uma companhia privada americana chamou Honh Sulston de Cambridge e Waterston de St. Louis, para os Estados Unidos, porque a área mais avançada do sequenciamento desenvolvia-se por tais pesquisadores. Os estudos desenrolaram-se através de financiamento público, mas a companhia privada desejava instalar-se em Seattle, no intento de atrair os cientistas com todo o conhecimento tecnológico construído ao longo dos anos, o que a credenciaria como empresa prestadora de serviços de seqüenciamento de genes. Quando o projeto genoma americano se voltasse para o sequenciamento em larga escala, descobriria que a empresa tinha na prática o monopólio da tecnologia e, sendo ela privada, o governo teria de lhe pagar para fazer o trabalho, mesmo que tivesse sido o financiador do processo. Novamente James Watson foi enérgico, conseguindo desta vez sucesso, pois Sulston e Waterston não deixaram seus postos.

Em decorrência desses dois acidentes, os NIH deram início a uma investigação ética em torno de um pretenso conflito de interesses entre a posição de James Watson como diretor do Centro Nacional para a Pesquisa do Genoma Humano e sua participação acionária em companhias privadas de biotecnologia. Entre a comunidade científica sabia-se ser esta investigação um mero pretexto para afastar Watson, pois se muitos cientistas pioneiros da revolução genética se haviam tornado multimilionários investindo em novas empresas de biotecnologia, não havia indícios de que Watson tivesse seguido esse exemplo.

Em 1993, a revista Science denunciava que a empresa norte-americana Incyte Pharmaceuticals Inc. desejava patentear até o final daquele ano, pelo menos 100 mil seqüências de cDNA. À época, o Instituto para a Pesquisa do Genoma Humano, de Craig Venter, então descobridor das 2.900 citadas seqüências, foi o articulador da primeira tentativa de patenteamento. Denunciou ainda o periódico que pelo menos 30 dos principais pesquisadores do Projeto Genoma Humano estavam assessorando ou abrindo empresas particulares para explorar as possíveis aplicações práticas do projeto em medicina, biologia molecular e engenharia genética. A empresa Incyt manifestou sua pretensão de patentear 40.000 sinapses e material genético do cérebro humano. Entre 1981 e 1995 concederam-se, em todo o mundo 1.175 patentes sobre sequências genéticas humanas, ainda que na maioria dos casos se desconhecesse sua função.

As religiões, como não poderia ser diferente, também não ficam à margem dessa calorosa discussão. Em 1995, preparou-se um documento assinado por cem bispos católicos e representantes de grupos muçulmanos, hindus e budistas do Estados Unidos para ser entregue ao Governo americano, pedindo a proibição dos direitos sobre patentes de engenharia genética. As companhias biotecnológicas defenderam-se afirmando que as patentes são, para a indústria, uma questão de vida ou morte, dando-lhes direitos exclusivos de comercialização, por dezessete anos e que se não houvesse a possibilidade de patentear genes humanos, milhares de pacientes perderiam acesso às novas drogas que salvam vidas (ANDREWS, 1995, p. 41).

Abre-se um parênteses para relembrar que as questões relativas às invenções sem patentes por diversas vezes ficam na história. Fleming, inventor da penicilina, não quis patentear seu invento por achar que o mundo deveria usufruí-lo sem precisar pagar royalties. A droga deveria ser franqueada ou ter preços baratos para o público. Como resposta à sua decisão, nenhuma empresa ousou arcar com os riscos de uma fabricação não patenteada e somente depois de dez anos, e mesmo assim com a intervenção do governo inglês, foi possível fabricá-la num laboratório particular, levando a penicilina a ficar conhecida (VARELA, 1998, p. 25).

O divulgado caso de John Moore ilustra brilhantemente a questão social e moral básica que acende o debate em torno de a quem pertencerá o genoma humano. O paciente, Sr. Moore, teve células de seu pâncreas retiradas cirurgicamente. Após o procedimento, o médico, vinculado a Universidade da Califórnia, utilizou-as para desenvolver uma linhagem celular com finalidade comercial, sem o consentimento do paciente e patenteou uma linha de células desenvolvidas a partir desse material. Moore pediu aos tribunais a revogação da patente argumentando que se concedia a outros a propriedade de sua essência genética. O titular da patente sustentou que as células patenteadas eram diferentes das originais do seu corpo e Moore perdeu o caso. A decisão do Tribunal supõe que se podem patentear os genes de uma pessoa não somente no caso de que se haja negado a dar seu consentimento mas, inclusive, havendo adotado ações legais para impedi-lo.

A Suprema Corte de Justiça da Califórnia, questionada pelo Sr. Moore, deu ganho de causa à Universidade da Califórnia. Os juízes afirmaram que um paciente não tem direito de propriedade sobre as suas células, que foram retiradas em uma cirurgia, por considerá-las material biológico descartado. Recomendaram, porém, que o médico deveria informar seus interesses pessoais de pesquisa e econômicos, previamente, ao paciente que forneceu o material.

Os tribunais reagem a outorgar patentes aos pacientes sobre seus órgãos, por temor a inibir a investigação médica. Os donos das patentes se escudam no argumento de que a propriedade das patentes não equivale à propriedade dos materiais orgânicos derivados do corpo humano, mas que simplesmente possuem direitos ao seu desenvolvimento comercial. Na realidade, sem dúvida, estas duas formas de propriedade estão intrinsicamente ligadas.

O Projeto Diversidade do Genoma Humano das Nações Unidas, impulsionado por Luca Cavalli-Sforza da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, consiste em uma recoleção genética de populações que representam relíquias históricas em perigo de extinção, para armazená-las em bancos genéticos e posteriormente decifrá-las e patenteá-las. Uma seqüência de uma mulher guaymi do Panamá, que se acredita contém o gene contra a obesidade, foi patenteada nos Estados Unidos com Ron Brown, ministro de comércio americano, como titular. Os NIH solicitaram patentes mundiais sobre o DNA e linhas celulares indígenas do Panamá, Papúa e das Ilhas Salomão. Mostras de sangue, cabelos e células epiteliais da boca foram tomadas dos indígenas de 722 tribos, sem que lhes fosse informado sobre o objetivo e sem seu consentimento. O ponto chave é o debate ético sobre o consentimento informado de difícil solução porque se os indígenas não entendem o projeto não podem dar o consentimento, e se não o entenderam, mui provavelmente recusariam fazê-lo. Geneticistas do Instituto de Genética de Bogotá reconheceram que tomaram mostras de indígenas asarios em Serra Nevada colombiana simulando programas de ajuda sanitária com a ajuda pessoal da multinacional farmacêutica Hoffman-La Roche. A solução proposta de subscrever contratos para que os povos indígenas obtenham parte dos benefícios da exploração comercial do seu material genético resulta muita problemática pela impossibilidade para estas populações de vigiar e fazer cumprir os acordos. Uma vez imortalizados os genes destes povos, não parecem tão necessário os esforços para garantir sua supervivência.

Na realidade, toda a parafernália biotecnológica serve para demonstrar que a mais profunda essência do ser humano não passa de um recurso como outro qualquer, passível de exploração comercial. A esperança alimentada por James Watson, de que o genoma humano pertenceria à população do mundo e não aos seus governos, parece ter sido condenada à frustração.

A menos que os legisladores estabeleçam limites inequívocos à patenteabilidade de formas de vida, as solicitações de patentes sobre material, produtos e processos genéticos no âmbito nacional e europeu crescerão e criarão precedentes jurídicos ad hoc.

A inclusão na norma legal de uma proibição explícita de patentes sobre tecidos humanos, animais e vegetais como a solicitada na Declaração Universal do Genoma Humano (1997) por uma proibição das patentes sobre as formas de vida, resolveria alguns mas não todos os problemas. A proibição de patentes não impedirá a mercantilização dos recursos genéticos mundiais nem recompensará a quem as tem preservado nem às autênticas inovações conseguidas.

Muito obrigada.

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz. Patenteando a vida. Disponível em: Enciclopédia Virtual de Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro. Publicado em: 11 nov. 2010, 5h16.

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