sábado, 9 de maio de 2009

Princípios da Bioética

MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
____________________________
Introdução

O principialismo (principlism) nasceu fundamentalmente da constatação de ser o mundo atual um mundo secularizado, politeísta, no qual não se pode mais ter como referência fundamentos seguros, definitivos e a-históricos (SCHRAMM, Fermin Roland. Da bioética privada à bioética pública. In: FLEURY, S. (Org.) Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997a, p. 227-240). Esse é um dos argumentos centrais pelo qual a análise dos princípios tem, neste trabalho, o referencial da bioética principialista. Pergunta-se, entretanto: podem os princípios funcionar como regras?

1 Princípios: noções conceituais

Existem princípios morais básicos e irredutíveis através dos quais se expressam obrigações prima facie. Desvinculam-se da obrigatoriedade e não guardam caráter de absolutos, admitindo, portanto, exceções de acordo com as circunstâncias específicas.

Os princípios, segundo H. Tristam Engelhardt, podem funcionar como regras, “[...] talvez como regras gerais que guiam o investigador a fazer um enfoque particular da solução de um problema. Se não fundamentais, são pelo menos úteis, servindo para indicar as fontes de áreas concretas de direitos e obrigações morais” (ENGELHARDT JR., H. Tristam. The foundations of bioethics. 2. ed. New York: Oxford University, 1996, p. 103). Podem igualmente cumprir uma função de justificação. Neste sentido são princípios, começos ou origens de determinadas áreas da vida moral.

As respostas à problemática suscitada pelos avanços biomédicos fundamentam-se em princípios que são uma ampliação dos antigos princípios de ética médica. Freqüentemente abordados pelos autores anglo-saxônicos, Sobretudo a partir da publicação, em 1978, do The Belmont Report, editado pela Comissão Nacional para Proteção de Pessoas Humanas na pesquisa biomédica e comportamental, são referidos como princípios de justiça, de não-maleficência, de beneficência e de autonomia e visam estabelecer a diferença existente entre respeitar a liberdade e garantir os interesses mais legítimos das pessoas. A mais importante obra sobre o tema, Enciclopedia of bioethics, não faz menção expressa a esses princípios. Contudo, ampla exposição será encontrada em diversos outros autores, entre os quais destacam-se Beauchamp e Childress e Engelhardt Jr. (BEAUCHAMP, Tom L., CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University, 1994, p. 120-394; ENGELHART JR., H. Tristam. The foundations of bioethics. 2. ed. New York: Oxford University, 1996, p. 102-134).

A criação nos Estados Unidos da Comissão Nacional (National Commission for the Protectio of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research) respondeu, por algum tempo, à urgência de se dar uma resposta ética às novas questões, estabelecendo alguns princípios ou critérios objetivos que intentavam respeitar as consciências individuais. O Relatório Belmont, publicado em 1978, que reconheceu as conclusões desse primeiro estudo aludia aos quatro princípios que se tornaram clássicos no desenvolvimento posterior da bioética.

2 Princípio de Justiça

É necessário, para definir o princípio da justiça, recorrer à velha definição do jurista romano Ulpiano: ius suum unicuique tribuens, que significa dar a cada um o seu direito. Normalmente interpretado pelos diversos autores através das exigências da justiça distributiva, suscita inúmeras ponderações em torno da dificuldade de distribuir justamente os recursos disponíveis, que são limitados ou escassos.

De alguma forma está o princípio de justiça insinuado no Juramento de Hipócrates ao rechaçar a sedução de livres e escravos e se encontra claramente presente na Declaração de Genebra, que afirma: “Não permitirei considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político ou categoria social para mediar entre meu dever e meu paciente.”

O Relatório Belmont indica ser o princípio de justiça uma questão de imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios. Mas aí surge a pergunta: quem é igual e quem não é igual, já que os homens têm diferenças de todo tipo? Quais considerações justificam afastar-se da distribuição igualitária?

Mais uma vez, à essas inquirições, é amplamente aceita a resposta do Relatório Belmont: a cada pessoa uma parte igual; a cada pessoa de acordo com a sua necessidade; a cada pessoa de acordo com o seu esforço individual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu. A idéia é compensar as desvantagens eventuais rumo à igualdade.

3 Princípios de Não-Maleficência e Beneficência

Esses princípios estão na base do Juramento de Hipócrates e têm sido centrais na ética médica clássica.

O Juramento contém, em parte, o chamado princípio da não-maleficência, que eqüivale a um princípio ético enunciado em latim e cuja origem não é clara: o de primum non nocere, cujo significado indica antes de tudo, não causar dano.

Beauchamp e Childress consideram-no um princípio independente, visto que o dever de não causar dano é mais obrigatório e imperativo que o de beneficência, que vem a ser a exigência de promover o bem do enfermo, formulado como o dever de não infligir dano a outros. O princípio de não maleficência propõe a obrigação de não infligir dano intencional (BEAUCHAMP, Tom L., CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University, 1994, p. 189) e abarca também o dever de não só infligir danos atuais, mas também o de prevenir riscos de danos futuros. Assumir graves riscos implica a existência de objetivos importantes que os justifiquem. Ao se falar de bioética, presume-se que os males não sejam aqueles morais, mas, sobretudo, embora não exclusivamente, os males corporais, como as dores, doenças, morte, entre outros. É possível violar o dever de não-maleficência sem agir com malícia e sem querer provocar o dano. Neste caso, engloba-se também a omissão.

No âmbito do princípio de não-maleficência serão tratados o princípio do duplo efeito, da totalidade, do mal menor e dos meios ordinários e extraordinários. O primeiro, o duplo efeito, é aquele segundo o qual, em determinadas e bem estremadas circunstâncias, é legítimo que uma ação tenha duas conseqüências: uma positiva e outra negativa. O efeito danoso é indireto e não propositado, sendo necessário que o agente pretenda, intencionalmente, apenas o efeito bom e não o mau. Este é tolerado, mas não procurado.[1] O efeito mau não pode ser meio para alcançar o bom, porque o fim não justifica os meios.[2] O princípio de totalidade surge do confronto entre a parte e o todo; da maior plenitude de significado que o todo possui com relação à parte. Numa situação de conflito é necessário preferir o todo.[3] O princípio do mal menor será aplicável nos casos em que todos os efeitos de uma ação inevitável serão negativos. Quando é forçoso agir, deve-se escolher o mal menor. O princípio dos meios ordinários e extraordinários era, tradicionalmente, usado pela moral católica. Hoje, prefere-se falar de meios opcionais e obrigatórios ou de meios proporcionais e desproporcionais. Demarca se um ato, do qual resulta a morte, é entendido como matar e especialmente como um matar culpável. Serve para estabelecer se a recusa dos meios chega a ser um delito.[4]

O princípio da beneficência, em seu sentido etimológico de fazer o bem, está incluído no Juramento de Hipócrates, tanto nas obrigações do médico, como em sua afirmação de que “[...] estabelecerei o regime dos enfermos de maneira que lhes seja mais proveitosa e sobretudo, na exigência de que em qualquer casa que entre, não levarei outro objetivo que o bem dos enfermos.” A Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, sintetiza de forma lapidar este princípio tradicional da praxis médica ao propor que “a saúde de meu paciente será minha primeira preocupação.” O Relatório Belmont não distinguiu claramente entre beneficência e não-maleficência e se embasava em duas normas: a de não causar dano e a de extremar os possíveis benefícios e minimizar os possíveis riscos.

Beauchamp e Childress afirmam que o princípio de beneficência estabelece a obrigação de que um indivíduo X traga bem a Y, se forem satisfeitas as seguintes condições: Y está ameaçado de uma perda significativa para vida ou saúde ou de algum outro interesse maior; a ação de X é necessária (única ou em conjunto com outra) para impedir estas perdas e danos; a ação de X (única ou em conjunto com outra) provavelmente evitará o referido dano ou perda; a ação de X não implicaria riscos, custos ou responsabilidades para X; o benefício que poderá receber Y compensará amplamente os danos, custos ou responsabilidades que possa sofrer X (BEAUCHAMP, Tom L., CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University, 1994, p. 266). Em decorrência, muito além dos riscos considerados mínimos para X, tratar-se-á de uma ação virtuosa, que supera o campo da obrigação. Assim, para que o princípio de beneficência seja obrigatório deve haver um cálculo de custos e benefícios, que não é extremamente complexo ou difícil de ser ponderado. A maior crítica ao princípio de beneficência é o perigo do paternalismo.

4 Princípio de autonomia

O princípio de autonomia não aparece de forma alguma no Juramento de Hipócrates, dando mostras de que o pensamento hipocrático ditava as exigências éticas que o médico era chamado a cumprir, ficando insensível aos direitos do paciente, que devem ser observados e respeitados pelo profissional da saúde. Da mesma forma nada se lê na Declaração de Genebra que remeta a tal princípio.

Reconhecida através dos tempos, mas colocada em evidência neste século, é a liberdade um dos valores máximos do ser humano. O princípio de autonomia significa o reconhecimento desta liberdade de ação, desde que o indivíduo, movido pelas suas próprias razões, não produza danos a outrem. Prevê uma atitude auto-responsável que se mostra atrelada ao contexto cultural, já que os seres humanos são motivados pela visão que possuem do mundo.

O grande conflito para o reconhecimento deste princípio surge no momento crítico em que o indivíduo enfrenta os seus próprios interesses[5], os direitos de um terceiro[6] ou quando na situação concreta deve-se negar-lhe essa autonomia.[7]

O Relatório Belmont denomina este princípio como o respeito pelas pessoas e afirma que incorpora, ao menos, duas convicções éticas: “primeira, que os indivíduos deveriam ser tratados como entes autônomos, e segunda, que as pessoas cuja autonomia está diminuída devem ser objeto de proteção.” O ser humano é um ente autônomo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e atuar sob a direção desta deliberação. Respeitar a autonomia é “dar valor às opções e eleições das pessoas assim consideradas e abster-se de obstruir suas ações, a menos que estas produzam um claro prejuízo a outros.” Mostrar falta de respeito por um agente autônomo “é repudiar os critérios destas pessoas, negar a um indivíduo a liberdade de atuar segundo tais critérios ou furtar informação necessária para que possa emitir um juízo, quando não há razões convincentes para isso.” Desta forma, a autonomia em seu sentido concreto vem a ser a “capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa.” Não se refere aqui ao conceito de Immanuel Kant do homem como autolegislador - pois o pensamento de Kant diz respeito à capacidade do sujeito para governar-se por uma norma que ele mesmo aceita sem coação externa, uma norma que deve ser universalizada pela razão humana (KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução: Marco A. Zingano, 1989, p. 34, n. 351. Tradução de: Zum Ewigen Frieden) -, mas no sentido de que o que aconteça com o paciente deverá passar sempre pelo trâmite do consentimento informado.[8]

Para H. Tristam Engelhardt, o princípio da autonomia considera a autoridade para as ações que implicam a outros derivada do mútuo consentimento que envolve os implicados. Em conseqüência, sem esse consentimento não há autoridade para fazer algo sem levar em conta o outro. As ações praticadas contra tal autoridade são culpáveis, pois violam a decisão do outro e, portanto, são puníveis. Com esse raciocínio, formula a máxima: “não faça a outros o que eles não fariam a si mesmos e faça por eles o que te comprometeste em fazer” (ENGELHARDT JR., H. Tristam. The foundations of bioethics. 2. ed. New York: Oxford University, 1996, p. 123).

Conclusão

Investigar estes princípios significa uma forma prática e útil de examinar as questões de bioética, mas não se pode perder de vista os seus limites. Determinadas concepções não poderão ser impostas, coativamente, ao paciente, mesmo que pressuponham a idéia de igualdade. Abrigar a todos sob o manto da igualdade é a essência do princípio de justiça que, aliado à beneficência e autonomia, configura um mínimo ético estabelecido com a intenção de abordar os conflitos que surgem das novas descobertas no campo biomédico. Esses princípios são acolhidos pelos pensadores europeus, embora não seja possível tantas vezes atingir um ponto em comum com seus respectivos conteúdos.
_________________________________
[1] À luz desse princípio será lícita a ablação do útero canceroso de uma grávida de um feto ainda não viável, pois o que se pretende é a vida da mãe, tolerando-se a morte do feto que resulta, inevitavelmente da ablação do útero. Ao contrário, o princípio do duplo efeito não se aplicaria a uma craniotomia, também para salvar a grávida, pois sendo a destruição do crânio o meio para obter a salvação da mãe, esse meio é desejado e não apenas tolerado.
[2] Com base neste princípio, admite-se a administração de altas doses de medicamentos com o objetivo de minorar o sofrimento de um paciente, mas que poderão ter como efeito indesejado a sua morte.
[3] No campo da medicina, é o exemplo da amputação de um membro ou de um órgão, quando é necessário intervir na integridade física do corpo humano, lesando uma parte para o bem de todo o corpo da pessoa.
[4] Princípio aplicável, caracteristicamente, à eutanásia (morte piedosa).
[5] Por exemplo, o Testemunha de Jeová que repele uma transfusão de sangue vital.
[6] É o caso da eutanásia ou o suicídio.
[7] Surge aqui a obrigação social de proteger os indivíduos para que possam expressar seu consentimento, antes que outros tomem atitudes contra eles e de proteger os débeis e os que não podem consentir por eles mesmos. Por exemplo, os menores, os deficientes mentais, ou quando um enfermo encontra-se em estado completo de inconsciência.
[8] As atividades de vacinação em muitos países onde a ocorrência das doenças preveníveis por imunização é bastante baixa requerem a utilização do consentimento esclarecido, além da existência de dispositivos legais prevendo a compensação por acidentes associados ao uso de agentes imunizantes. O enfoque dado para o mesmo problema em países como o Brasil, onde a morbimortalidade resultante de tais doenças é ainda bastante elevada, leva em conta todas as formas possíveis de reduzir os obstáculos à vacinação. É claro, o dano quase nunca é deliberado, mas o risco de provocá-lo não é nulo, cabendo ao pesquisador ou autoridade sanitária antecipá-lo, utilizando os conhecimentos disponíveis, bem como colocando indivíduos e grupos a par dos riscos envolvidos. Pode-se também ressaltar que o dano não se resume à esfera da dor e às lesões físicas, mas pode alcançar o universo psicológico do indivíduo.

Nenhum comentário: