sábado, 9 de maio de 2009

Mas, afinal, quid ius? - que coisa é o Direito?

Professora Sílvia Mota
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O conceito de Direito é apresentado como um paradigma de ambigüidades. Existem poucas questões, na esfera dos estudos jurídicos, que hajam provocado tão amplo e, visivelmente, infecundo debate.

Respeitadas as margens por onde deverão rolar as idéias desta obra, apontar-se-á um panorama geral do tema em epígrafe।

A priori, cumpre analisar os termos ius, jus e direito। O termo ius é um vocábulo muito antigo, da língua latina, encontrado na formação de diversas palavras da língua portuguesa, ao lado do termo jus, significando este direito, numa acepção de prerrogativa pessoal: justiça, juiz, jurisdição, jurisconsulto, jurisprudência, entre outras.

A etimologia da palavra ius é controversa। Sob o ardor desta querela, muitos autores, sob o ponto de vista filológico, desconsideram a hipótese de que seja derivada das palavras iustitia (justiça) ou de iustum (justo), porque um vocábulo simples não poderia derivar do composto, sendo correta a derivação inversa; enquanto outros estudiosos a admitem sob o ponto de vista ôntico e semântico: o ser e o sentido ius procedem da iustitia.

Esta parturição de idéias parece figurar nos símbolos do Direito, onde a deusa Iustitia declara o ius, além de ser encontrada, também, num fragmento dos escritos de Ulpiano, exposto no Digesto (1,1,1 pr.), onde assegura o jurisconsulto que a realidade do direito é gerada ou nasce da justiça (Iuri operam daturum prius nosse oportet unde nomen iuris descendat. Est autem a iustitia appellatum)

O glosador Acúrsio comenta o trecho em análise, afirmando que o direito procede da justiça, como de sua mãe e, portanto, existiu primeiro a justiça do que o direito (Ius est autem a iustitia, sicut a matre sua. Ergo fuit primus iustitia, quam ius)।

Longe de se resolver nestes posicionamentos, a contenda permanece na reflexão de Santo Tomás de Aquino, quando afirma na Suma contra Gentiles (Livro II, capítulo 28) que o ato pelo qual alguma coisa se torna de alguém precede o ato de justiça. Portanto, a justiça poderia considerar-se filha do direito; e, proveniente dela, (sicut a matre sua).

Originariamente, parece ter sido o termo ius utilizado em Roma, significando o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas à organização da vida dos romanos em sociedade; mantendo-se ao lado do fas, que reunia as normas divinas, religiosas, dirigidas às relações entre os homens e as divindades।

Nos primeiros tempos do mundo romano o fas imperava, cabendo sua aplicação aos pontífices, ministros religiosos supremos, os quais monopolizavam secretamente os princípios jurídicos que ordenavam as ações humanas। Ebert Chamoun anuncia terem sido, talvez, as mores maiorum (costumes dos antepassados), de inspiração religiosa, as mais antigas normas jurídicas.

Mas, corresponderiam os conceitos de ius e fas da época histórica aos seus significados ओरिगिनैस?

Para alguns estudiosos, entre estes Göthimg, Lambert, Hervelin, Wenger, Beseler, Düll, ius e fas eram termos antagônicos, originando-se o primeiro no vocábulo yug, de raiz indo-européia, que traduziria a idéia de um vínculo estabelecido pela vontade humana. Outra posição, defendida por Pietro de Francisci, concebe ius e fas como partes integrantes de uma mesma realidade ontológica, ambas enquanto manifestação da vontade divina. A distinção operada teria, portanto, simples nuança histórica: fas concebia-se como regulação das relações das gentes pré-citadinas, enquanto ius era o ordenamento próprio dos cidadãos. Outros estudiosos perceberão fas, nefas e ius como adjetivos, revelando a licitude ou ilicitude dos comportamentos humanos. Noutra versão, ius poderia também ter representado o fruto do acordo de vontades dos cidadãos, cuja necessidade de fazer respeitar advinha do fas.

A este respeito, entende Antonio Guarino, jus se concebe como manifestação do uso que os humanos fazem do fas, da sua liberdade. Conceito mais bem formulado, este persistiu. Sendo assim, infere-se, a separação entre fas e ius não indica a irreligiosidade deste último. Ao contrário, o jus se concebe como parte do fas, conceito lato sensu, do qual surgiu.

Dicotômica, também, no direito romano, era a divisão em ius civile e ius gentium. O ius civile significava literalmente direito civil, direito peculiar a um determinado Estado e, neste sentido, direito dos cidadãos romanos; o ius gentium abrangia o direto comum aos romanos e aos outros povos (direito das pessoas/gentes, compondo-se por dois substantivos: jus = direito e gentium = pessoas = raça, nação). O ius gentium qualificava essencialmente o direito dos estrangeiros na sua relação com os cidadãos, em oposição ao jus civile, o da cidade romana। Atualmente, indica, em direito internacional, as regras jurídicas fundadas na natureza das coisas, aplicáveis a todos os povos e não somente aos assuntos de um Estado determinado.

A existência de institutos jurídicos a todos os povos da Terra levou ao discernimento de que originariam de uma naturalis ratio (razão natural), diversamente da civilis ratio (razão civil) que influi o ius civile. A partir de então, foi o ius gentium concebido como ius naturale (direito natural), sendo os dois termos considerados sinônimos.

Através de Cícero consagra-se a expressão direito natural, ao fazer a tripartida divisão do Direito Romano: ius civile, ius gentium e ius naturale. Não poderiam, entretanto, ius civile e ius gentium entrar em conflito com o ius naturale, direito natural, conjunto de princípios norteadores, localizados acima do arbítrio do homem, extraídos filosoficamente da natureza das coisas, visando solucionar ou inspirar a solução dos casos in concreto; inerente à natureza humana.

A época clássica do Direito romano transcorre durante os séculos II e III da era Cristã e o pensamento dos juristas quanto à procura do justo submete-se ao pensamento de Aristóteles.

Gayo retorna à divisão dicotômica do Direito: ius civile e ius gentium e Ulpiano resgata a divisão tríplice do Direito alcançada por Cícero. Ao falar do ius naturale, abrange a todos os animais, pois o define como o direito ensinado por Deus a todas as criaturas, não sendo exclusivamente próprio do gênero humano। Tal conceito foi adotado nas Institutas de Justiniano.

A palavra direito, etimologicamente, provém do latim directu (qualidade do reto, sem curvatura), que suplantou as expressões ius e jus, do latim clássico, por ser mais expressiva. Ao olhar do homem comum é lei e ordem.

No mundo moderno, em noção sagrada pelo uso, o Direito é entendido como um conjunto de regras obrigatórias garantidoras da convivência social, graças à instauração de limites à conduta dos indivíduos. É o ius romano. Assim sendo, assinala Miguel Reale, quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o faz, age torto.

Seguem, algumas definições clássicas de Direito:

Digesto: Celso, citado por Ulpiano 533 d.C.:
Ius est ars boni et aequo” (“O direito é a arte do bom e do justo”).

Gustav Radbruch:
“[...] não apenas um querer e dever, mas sim uma força real e atuante na vida do povo. Assim, apesar de toda a capacidade de inovar, a lei somente poderá apor seu selo às regras que o costume desenvolveu [...]”

Guillermo A. Borda:
“[...] o conjunto de normas de conduta humana obrigatórias e conformes à justiça.”

Hermes Lima:
“Direito positivo é [...] o conjunto de regras de organização e conduta que, consagradas pelo Estado, se impõem coativamente, visando à disciplina da convivência social.”

José de Oliveira Ascensão:
“O Direito é uma ordem da sociedade। Uma ordem e não a ordem, repare-se, porque na sociedade outras ordens se encontram। [...]é também a arte ou virtude de chegar à solução justa no caso concreto।”

Outros significados podem ser oferecidos ao Direito.

Para Rubens Limongi França, é “[...] o conjunto das regras positivas (ius in civitate positum) que regem, dentro da sociedade organizada, a questão do meu e do seu.” Neste domínio, deve ser entendido sob quatro aspectos:
a) como o que é justo: relaciona o Direito ao conceito de ideal de Justiça. Esta reflexão dimana dos jurisconsultos romanos para os quais ius est a justitia appellatum (o Direito provém da Justiça). A criação do Direito não tem e não pode ter outro objetivo senão a realização da Justiça;
b) como regra de direito: entendida como ordem social obrigatória estabelecida para regular a questão do meu e do seu. Trata-se da norma agendi (direito objetivo);
c) como poder de direito: emana do direito objetivo o poder de exigir determinado comportamento de outrem. Trata-se do direito subjetivo, constituído do poder de direito, entendido como facultas agendi (faculdade de agir), ou conjunto de faculdades conferidas às pessoas pela regra de direito.
d) como sanção de Direito: para o autor, a sanção integra a natureza do Direito, sem o que o direito seria inatuante.

Como se vê, é dificultoso expressar o significado da palavra Direito.

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