Professora Sílvia M. L. Mota
Surge nos séculos XVIII e XIX, em decorrência do
movimento positivista, a Teoria do Utilitarismo, entendido este como ética
normativa. Formulou-se através da metodologia moral e social de Stuart Mill
(Utilitanianism), Jeremy Bentham (The principles of morals and legislation) e,
também, de Henry Sidgwick (The Method of ethics).
O princípio fundamental desta metodologia é
anunciado pelo aforismo: fugir da dor e buscar o prazer – a felicidade. A ética
utilitarista consiste na identificação do bom com o útil e se expressa no
sentido de que a melhor ação é aquela que produz a maior felicidade para o
maior número de pessoas, e pior é aquela que, de igual maneira, ocasiona a
miséria.[1] Sendo assim, uma ação é moralmente benquista se aspira a busca da
felicidade e inaceitável se tende a produzir a infelicidade. Para além da
felicidade do agente da ação, considera-se, também, a felicidade de todos
aqueles afetados. A felicidade individual concretiza-se quando revela a
felicidade geral. Esta afirmação supõe um liame entre a utilidade individual e
a utilidade pública, pressuposto do pensamento de James Mill, para quem cada um
deseja a felicidade alheia porque esta se encontra intimamente associada à sua
própria felicidade.
Mas, pergunta-se, logo de início: quando entra em
cena a vida humana, deve-se considerar como critério da reflexão ética o bem
individual de um ser humano ou o cálculo de probabilidade maior ou menor que
tem um determinado ato ou norma de promover o maior bem abstrato?
Neste texto, a discussão se coloca nos contornos
das investigações biomédicas com embriões humanos, a partir das quais se
pretende contribuir para o bem-estar do maior número de pessoas. O perigo,
iminente, é destituir de valor a vida do embrião, por si mesma, passando-se a
tratá-la como um bem físico, nada mais. O conteúdo axiológico, na ética
utilitarista, parece erigir-se unicamente na atitude do médico ou do cientista,
quando imprimem às suas ações uma finalidade ou intenção, boa ou má. A vida do
embrião se reduz à condição de meio adequado para alcançar um fim proposto,
nestes casos, a cura de enfermidades ou investigação biomédica. Corre-se,
portanto, o risco de lançar ao esquecimento a fórmula kantiniana do imperativo
categórico: "Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua
pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e
nunca apenas como um meio”.
As pedras angulares que se digladiam nos campos da
bioética e do biodireito, a favor da investigação com embriões humanos, fundam
suas raízes neste utilitarismo ético, que lhes outorga um tratamento que os
mantém mais ao lado da natureza relativa às coisas do que às pessoas. A partir
deste espectro utilitarista da vida, a dignidade humana se queda notadamente
ameaçada, pois a pesquisa biomédica deixa de ser um instrumento humano para
melhora da qualidade e expectativa de vida dos embriões. A investigação
científica, abalizada no cumprimento de diretrizes e apreciações externas à
própria vida humana, repercute - fatal - na consideração do embrião, cuja vida
se reinterpreta em termos de utilidade biológica: a vida de um indivíduo humano
não tem valor per si, mas só enquanto relacionada a algo ou alguém. Desta
forma, os interesses estranhos ao embrião preponderam frente à realidade humana
ali assentada. Estes interesses suscitam investigações biomédicas fundadas num
procedimento que norteia uma crescente ausência de proteção jurídica e estimula
a coisificação da vida humana embrionária, deixando esta de ser limite ético e
alicerce para uma adequada investigação biomédica com embriões humanos.
John Rawls, filósofo, dentro da tradição liberal
resgata a discussão sobre o contrato social e repreende a tendência
utilitarista por privilegiar a maximização dos benefícios - o que pode ser
conveniente - mas injusto, porque alguns indivíduos são sacrificados em
benefício de outros e não se pode ofender a inviolabilidade de cada pessoa
considerada na sua individualidade, qualidade que não pode ser sacrificada nem
mesmo em favor do bem-estar da sociedade. No mesmo átrio, expõe Heller que as
necessidades dos seres humanos – todas – devem ser concretizadas, com exceção
daquelas que, para a sua satisfação, exijam que um homem seja meio para outro
homem. Para John Rawls, existe um equívoco quando se identifica o bem-estar
social com as definições de bem, quando se deveria relacioná-lo ao que é justo.
Essa posição é lançada, em razão do destaque social das ideias utilitaristas
sobre a admissão de uma sociedade ordenada de acordo com a maximização do
bem-estar dos cidadãos. Segundo o pensador, este pensamento contraria as noções
básicas de Justiça, afrontando as liberdades de expressão, as liberdades
políticas e a igualdade de oportunidades e de direitos. Assume o jusfilósofo o
dito kantiano de que nenhum ser humano pode ser usado como meio para se
alcançar um fim determinado, mesmo que seja este para beneficiar uma sociedade
inteira. Neste passo, considera a dignidade moral das pessoas defendendo o
princípio de que cada pessoa deve ser preservada na particularidade, e que é
preciso “[...] respeitar as distinções entre as pessoas.”[2]
Deve-se salientar que a Teoria do Utilitarismo pode
ser vislumbrada através de duas categorias: o de ato e o de norma. Sob o prisma
do utilitarismo de ato, faz-se necessário deliberar quanto ao que é certo ou
obrigatório por solicitação direta ao princípio de utilidade. Isso significa
dizer que é necessário situar qual das possíveis ações produzirá, em termos,
maior porção de bem presumível em relação ao mal. Ajuíza-se o efeito do ato
numa determinada circunstância arrolando-o ao equilíbrio geral do bem em
relação ao mal. Estas são as diretrizes éticas do momento: numa situação de
conflito, sopesar os prós e contras da ação humana, no condizente ao resultado
esperado. A partir do utilitarismo de norma valoram-se as regras na moral,
salientando-se o quanto é relevante tomar uma atitude específica em função de
uma regra e não inquirindo sobre qual atitude gerará consequências melhores
numa determinada situação. As regras, aqui em relevo, devem promover o maior
bem possível para o maior número possível de pessoas. A partir deste
raciocínio, não há que se perguntar se determinada regra é certa ou errada,
justa ou injusta, mas apenas se é legítima ou ilegítima. Sendo regra,
estabelecida a partir do consenso social, deverá ser seguida. Desemboca-se,
portanto, nas regras jurídicas, obrigatórias e sancionadoras da conduta humana;
regras estas que exigem revisão constante, sendo a cada passo, substituídas,
com base em sua finalidade. No Brasil, esta visão finalista do Direito revela
suas raízes no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum.”
As atividades dos cientistas nas investigações
biomédicas com embriões humanos acompanham as necessidades de oferecer uma
melhor qualidade de vida ao grupo social, contudo seus atos devem expressar o
aceite dos seres humanos envolvidos. Por tal razão, busca-se fundamento em
Heller, quando afirma que o sistema de necessidades humanas deveria
corresponder ao sistema de necessidades eleitas pelos humanos. Pode-se concluir
desta afirmativa que a finalidade da ação humana é, essencialmente, também o
padrão de moralidade (conjunto de regras e preceitos da conduta humana)
cominado pela sociedade. Alcançado este ponto, não se deve olvidar que as
relações travadas entre homem e sociedade não se encontram cristalizadas
através dos tempos. Ao contrário, vivificam-se, a partir das aspirações e
objetivos do grupo social.
Uma sociedade que se estribe nas marcas da Justiça
é aquela na qual seus pilares - as instituições – busquem a efetivação do
bem-estar social, com a participação de todos os sujeitos envolvidos. É
necessário afirmar que em todas as relações, individuais ou coletivas,
colocam-se momentos em que os sacrifícios devem ser aceitos em função de um bem
maior. John Rawls corrobora ao aproveitar a ideia utilitarista: “[...] a
sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando as
instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior
saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações
individuais de todos os seus membros.”[3]
No rastro dessas orientações, afirma-se que a
pesquisa com embriões humanos não afronta a dignidade humana, tendo em vista
que seus resultados privilegiam não somente um indivíduo em particular, mas a
sociedade como um todo, e, por essa razão, a aceitação geral inviabiliza a
ofensa. Atender aos interesses da maioria é, também, uma forma de se fazer
justiça. Cabe, entretanto, apreciação crucial das preferências, para que não se
apresentem ofensivas, onerosas ou excessivamente modestas.[4]
Nesse contexto, cabe aos legisladores estabelecerem
e aos magistrados efetivarem um Direito que - cumprindo o seu fim - concretize
o anseio social. A máxima que divisa o ser humano como fim em si mesmo é
imprescindível na criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, pois
este enfoque servirá de referencial ao estabelecimento de um mínimo ético a ser
considerado pelo Direito. Justifica-se, assim, o paradigma do Estado
Democrático de Direito, através do qual quaisquer projetos relacionados à vida
humana agregam-se, com fulcro numa ordem jurídica que se curva à majestade dos
Direitos Fundamentais e, em especial, à imponência ético-jurídica do Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana.
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Notas
[1] Cesare Beccaria em sua obra clássica Dos
Delitos e das Penas foi o primeiro a formular essa ideia, a seguir adotada por
outros pensadores.
[2] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo:
M. Fontes, 1997, §5, §§26-28, §30 e §54.
[3] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo:
M. Fontes, 1997, p. 25.
[4] Preferências ofensivas são aquelas com forte
apelo discriminatório, que envolvem desprezo por categorias ou grupos sociais,
preconceitos religiosos ou raciais. Se tais preferências forem satisfeitas, as
demais preferências serão tratadas de forma desigual. As preferências onerosas
são as que fazem exigências excessivas aos recursos escassos. Um grupo pode ter
desenvolvido o gosto por uma vida luxuosa e cara, e sentir-se-ia extremamente
infeliz não usufruindo de tal vida, e enfim não é justo que alguns se privem de
necessidades mais básicas para ver satisfeita tal exigência. E as preferências
modestas são resultado da vivência em um meio social enfraquecido, assim, por
não ter acesso a certas demandas socais fundamentais, como educação e saúde, as
pessoas podem acreditar que não necessitam de mais do pouco que recebem.
PELLIZZARO, Kerlly. A concepção de pessoa na teoria da justiça equitativa de J.
Rawls. Dissertação apresentada à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em
Filosofia, Área de concentração em História da Filosofia Moderna e
Contemporânea, Linha de Pesquisa: Ética e Política, turma 4 (2003/2005), Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Curitiba,
2006. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Dissertacoes/kerlly.pdf.
Acesso em: 11 maio 2009.
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